Foi em 1958, depois da
delegação do Mixto passar um final de semana concentrada na Cadeia Pública de
Campo Grande, para enfrentar a seleção amadora da cidade que o meia armador
Uírton decidiu encerrar uma longa carreira no futebol mato-grossense. Isso
mesmo: tração na Cadeia Pública. Os jogadores dormiam em redes de cordas da
Aeronáutica e comiam junto com o pessoal da guarda da prisão.
Outro fato concorreu para
Uírton tomar a decisão de parar. No decorrer do jogo, no domingo, e cujo
resultado Uírton não se lembra, a seleção marcou um gol através de um jogador
que era cabo da Aeronáutica. Para comemorar o gol, o militar pegou a bola e
deu um chute de peito de pé nela, fazendo a rede estufar.
O zagueiro Nascimento
Cachorra interpretou o gesto do adversário como uma ofensa e não vacilou: deu
um violento pontapé na perna do adversário. Pronto! Estava armado o maior
pampeiro. Enquanto o cabo rolava no chão, simulando uma contusão grave, a
torcida invadiu o campo e partiu para a agressão contra os mixtenses.
Em minoria, os jogadores
alvinegros se defendiam como podiam, mas estavam levando porradas de todos os
lados da torcida campo-grandense. Só não houve um massacre nesse jogo porque de
repente entrou em campo um numeroso grupo de tenentes do Exército que estavam
fazendo um estágio numa unidade militar de Campo Grande e conseguiu dominar a
situação.
Muitos mixtenses saíram de
campo machucados. Uir, irmão de Uírton, teve que ser carregado para o
vestiário, pois não conseguia nem andar. Ele tinha levado numa das pernas uma
violenta bicuda de um torcedor que estava calçado de botina e tinha entrado na
pancadaria para bater nos mixtenses.
Na realidade, desde que
deixou o Atlético Mato-grossense para ingressar no Mixto, em 1949, depois de
passar também pelo Paulistano e o Operários Futebol Clube, Uírton tinha um
sonho na vida: virar motorista. Ele gostava de jogar bola, mas a vontade de um
dia ser motorista era muito maior...
Com sua ida para o Mixto,
seu sonho começou a virar realidade. Aos domingos, quando não tinha jogo, o
diretor do Departamento de Saúde de Mato Grosso, Henrique de Aquino, passava
horas ensinando Uírton a dirigir. Os dois saíam de Cuiabá e depois que passavam
a Ponte Velha, Aquino entregava o carro para Uírton. Naquele tempo, a hoje
Avenida da FEB era uma ruela deserta...
Em setembro de 1949, Uírton
recebeu sua primeira carteira de motorista. Com a habilitação na mão, ele
passou a conciliar o futebol com a nova profissão. Trabalhando no Departamento
de Saúde, periodicamente ele ia para Campo Grande levar hansenianos – naquele
tempo, chamados de leprosos – para tratamento na Colônia São Juliano.
Os hansenianos que iam
chegando a Cuiabá eram confinados casa no bairro São João, onde ficavam
aguardando o dia de viajar. Se eram poucos doentes, a viagem era feita numa
ambulância do Departamento de Saúde; acima de 15, iam numa jardineira da Saúde
Federal.
Recorda Uírton que ele saía
com muito dinheiro para as viagens para Campo Grande e com uma ordem expressa:
não deixar faltar nada para os doentes. Além das refeições, se precisasse ele
podia comprar remédios, calçados, roupas, cobertores, para os hansenianos. Era
só prestar contas depois.
– Eu tinha muitas
oportunidades de falsificar notas fiscais, mas nunca fiquei com um centavo
dessas viagens – orgulhava-se Uírton, que se aposentou com um salário de
apenas R$ 350,00 e morreu pobre.
O emprego de Uírton no
Estado não durou muito tempo. Na eleição para governador de Mato Grosso em
1950, disputada por Fernando Correa da Costa (UDN) e João Ponce de Arruda
(PSD), Uírton foi recrutado para trabalhar no dia da votação. Sua função:
pegar comida no Restaurante Esplanada (onde está hoje a Lojas Riachuelo, na
Avenida Getúlio Vargas), numa jardineira da CER (Comissão de Estradas de
Rodagem) e levar para os mesários de uma sessão eleitoral que funcionava num
imóvel onde hoje é o Shopping Popular.
Na hora de pegar a comida,
Uírton notou que havia muitos pratos com molhos e caldos que fatalmente iam
derramar até ele chegar ao destino. Aí, uma mulher que acompanhava uma conversa
entre Uírton e um empregado do restaurante sobre o problema dos pratos
caldeados, ofereceu-se para levá-los no colo, pois estava indo para aquelas
bandas. Ele aceitou, muito agradecido, a gentileza da senhora.
Para chegar à seção
eleitoral, Uírton tinha que passar pela casa de Ponce de Arruda. E para azar
seu, uma cunhada do candidato identificou a mulher que estava na jardineira:
era eleitora da UDN. Além de ter advertido Uírton por ele estar carregando na
jardineira uma pessoa adversária do partido que apoiava Ponce de Arruda, a
cunhada do candidato ainda o denunciou ao diretório do PSD. Dias depois da
eleição, Uírton recebeu uma carta do diretório regional do PSD comunicando sua
demissão do emprego...
No Mixto, clube em que
Uírton jogou durante 10 anos, ganhando inclusive um tetracampeonato – 51, 52,
53 e 54 – os jogadores recebiam apenas prêmios nas vitórias (20% da renda) e
empates (10%). No entanto, muitos jogadores caras de pau achavam sempre um
jeitinho de beliscar um dinheirinho por fora dos dirigentes mixtenses, mas
Uírton não. Ele tinha vergonha até de ir à Imprensa Oficial do Estado para
receber do diretor do Mixto e da empresa estatal, Ranulpho Paes de Barros, os
“bichos” por vitórias e empates...
A
falta de perspectivas no alvinegro levou Uírton a ir fazer um teste num time
de Uberlândia, em Minas Gerais. O centroavante Leônidas, que tinha esse nome
porque era bom na bicicleta, jogada inventada por Leônidas da Silva, o Diamante
Negro, tinha trocado o Mixto pelo clube de Uberlândia e havia recomendado
Uírton, seu irmão Uir e o goleiro Dito Gasolina ao técnico do time mineiro.
Um empresário veio a Cuiabá
buscar os três, com promessas vantajosas. Quando chegaram a Uberlândia ficaram
assustados: havia uns 100 jogadores na “república” do clube sendo submetidos a
testes. Logo nos primeiros treinos, os três mixtenses começaram a fazer
sucesso, confirmando as referências de Leônidas.
No dia do teste final, Dito
Gasolina chegou de madrugada na “república” bêbedo feito um gambá. Foi uma
vergonha para os cuiabanos. Mas vergonha maior estava por vir ainda. Dito
Gasolina acordou de ressaca e foi treinar. Resultado: engoliu frangos de bola
chutada até do meio de campo...
Terminado o treino, o
empresário comunicou a Dito Gasolina que o clube preferia o outro goleiro que
estava sendo testado. Mas os irmãos Uírton e Uir seriam contratados.
Uir estava de casamento
marcado em Cuiabá e avisou o empresário que depois do casório decidiria se
aceitaria a proposta do clube uberlandense, que incluía, além de prêmios por
vitória e empates, aluguel de casa e comida de graça para ele e a mulher.
Uírton receberia o mesmo tratamento.
Mas Uírton preferiu retornar
a Cuiabá para o casamento do irmão e refletir melhor se voltaria ou não. E não
voltou. É que Uírton, ainda garotão, tinha tido uma desavença com um jogador do
clube mineiro, de nome Djalma, que vivia gozando os cuiabanos dizendo que
Cuiabá era uma cidade de índios e animais selvagens e que os três tinham que
andar de mãos dadas em Uberlândia para não se perderem...
Em 1960, Uírton arrumou uma
nova mulher e foi embora para Corumbá, onde jogou durante seis anos no time
dos motoristas da Cimento Itaú. Por ser formado só de motoristas, o time
chamava-se São Cristóvão, o santo protetor dos profissionais do volante.
De volta a Cuiabá, um dia
Uírton foi procurar o vice-governador, o médico José Monteiro (Zelito) de
Figueiredo, para pedir que ele o ajudasse a conseguir um emprego de motorista
da Cemat, que tinha acabado de comprar uma C 10 zerinho. O vice-governador
rabiscou um bilhete numa folha de caderno e mandou Uírton levar para o
presidente da Cemat, um irmão do governador José Fragelli, de nome Cláudio, um
sujeito prepotente que não recebia cuiabanos.
Uírton foi procurar Cláudio,
com o bilhete nas mãos, porém assessores do presidente da empresa lhe disseram
que ele não seria recebido. Mas entregariam seu bilhete a Cláudio Fragelli.
– É lá do governo. Tenho
ordens de entregar pessoalmente ao presidente – disse com firmeza Uírton.
Foi recebido. Depois de uma
ligeira conversa entre os dois, Cláudio, com o bilhete de Zelito nas mãos,
disse-lhe secamente: “Chegue amanhã cedo para começar a trabalhar...”
Uírton trabalhou muitos anos
na Cemat. Como motorista, vivia viajando com um contador da empresa e cujo
nome não se lembra, que saía por Mato Grosso fazendo cobranças. “Muitas vezes a
gente voltava para Cuiabá com a C 10 cheia de sacos de dinheiro. Naqueles
tempos não tinha esses negócios de assaltos desses bandidos de hoje...” –
lembra ele.
Recorda Uírton que sua
passagem pela Cemat foi um período de boa vida. O contador era chegadinho numa
cerveja e Uírton não ficava para trás. Dinheiro era o que não faltava para os
dois. “Nossa vida era só alegria...” – recordava com saudades.
(Reproduzido do
livro Casos de todos os tempos Folclore do futebol de Mato Grosso, do
jornalista e professor de Educação Física Nelson Severino).