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terça-feira, 27 de junho de 2017

Concentração na cadeia e fim de carreira


Foi em 1958, depois da delegação do Mixto passar um final de semana concentrada na Cadeia Pública de Campo Grande, para enfrentar a seleção amadora da cidade que o meia armador Uírton decidiu encerrar uma longa carreira no futebol mato-grossense. Isso mesmo: tração na Cadeia Pública. Os jogadores dormiam em redes de cordas da Aero­náutica e comiam junto com o pessoal da guarda da prisão.
Outro fato concorreu para Uírton tomar a decisão de parar. No de­correr do jogo, no domingo, e cujo resultado Uírton não se lembra, a seleção marcou um gol através de um jogador que era cabo da Aeronáutica. Para co­memorar o gol, o militar pegou a bola e deu um chute de peito de pé nela, fazendo a rede estufar.
O zagueiro Nascimento Cachorra interpretou o gesto do adversário como uma ofensa e não vacilou: deu um violento pontapé na perna do adver­sário. Pronto! Estava armado o maior pampeiro. Enquanto o cabo rolava no chão, simulando uma contusão grave, a torcida invadiu o campo e partiu para a agressão contra os mixtenses.
Em minoria, os jogadores alvinegros se defendiam como podiam, mas estavam levando porradas de todos os lados da torcida campo-grandense. Só não houve um massacre nesse jogo porque de repente entrou em campo um numeroso grupo de tenentes do Exército que estavam fazendo um estágio numa unidade militar de Campo Grande e conseguiu dominar a situação.
Muitos mixtenses saíram de campo machucados. Uir, irmão de Uír­ton, teve que ser carregado para o vestiário, pois não conseguia nem andar. Ele tinha levado numa das pernas uma violenta bicuda de um torcedor que estava calçado de botina e tinha entrado na pancadaria para bater nos mixtenses.
Na realidade, desde que deixou o Atlético Mato-grossense para ingressar no Mixto, em 1949, depois de passar também pelo Paulistano e o Operários Futebol Clube, Uírton tinha um sonho na vida: virar motorista. Ele gostava de jogar bola, mas a vontade de um dia ser motorista era muito maior...
Com sua ida para o Mixto, seu sonho começou a virar reali­dade. Aos domingos, quando não tinha jogo, o diretor do Departamento de Saúde de Mato Grosso, Henrique de Aquino, passava horas ensinando Uírton a dirigir. Os dois saíam de Cuiabá e depois que passavam a Ponte Velha, Aqui­no entregava o carro para Uírton. Naquele tempo, a hoje Avenida da FEB era uma ruela deserta...
Em setembro de 1949, Uírton recebeu sua primeira carteira de motorista. Com a habilitação na mão, ele passou a conciliar o futebol com a nova profissão. Trabalhando no Departamento de Saúde, periodicamente ele ia para Campo Grande levar hansenianos – naquele tempo, chamados de le­prosos – para tratamento na Colônia São Juliano.
Os hansenianos que iam chegando a Cuiabá eram confinados casa no bairro São João, onde ficavam aguardando o dia de viajar. Se eram poucos doentes, a viagem era feita numa ambulância do Departamento de Saúde; acima de 15, iam numa jardineira da Saúde Federal.
Recorda Uírton que ele saía com muito dinheiro para as viagens para Campo Grande e com uma ordem expressa: não deixar faltar nada para os do­entes. Além das refeições, se precisasse ele podia comprar remédios, calçados, roupas, cobertores, para os hansenianos. Era só prestar contas depois.
– Eu tinha muitas oportunidades de falsificar notas fiscais, mas nun­ca fiquei com um centavo dessas viagens – orgulhava-se Uírton, que se aposen­tou com um salário de apenas R$ 350,00 e morreu pobre.
O emprego de Uírton no Estado não durou muito tempo. Na eleição para governador de Mato Grosso em 1950, disputada por Fernando Correa da Costa (UDN) e João Ponce de Arruda (PSD), Uírton foi recrutado para traba­lhar no dia da votação. Sua função: pegar comida no Restaurante Esplanada (onde está hoje a Lojas Riachuelo, na Avenida Getúlio Vargas), numa jardi­neira da CER (Comissão de Estradas de Rodagem) e levar para os mesários de uma sessão eleitoral que funcionava num imóvel onde hoje é o Shopping Popular.
Na hora de pegar a comida, Uírton notou que havia muitos pratos com molhos e caldos que fatalmente iam derramar até ele chegar ao destino. Aí, uma mulher que acompanhava uma conversa entre Uírton e um empre­gado do restaurante sobre o problema dos pratos caldeados, ofereceu-se para levá-los no colo, pois estava indo para aquelas bandas. Ele aceitou, muito agra­decido, a gentileza da senhora.
Para chegar à seção eleitoral, Uírton tinha que passar pela casa de Ponce de Arruda. E para azar seu, uma cunhada do candidato identificou a mulher que estava na jardineira: era eleitora da UDN. Além de ter advertido Uírton por ele estar carregando na jardineira uma pessoa adversária do parti­do que apoiava Ponce de Arruda, a cunhada do candidato ainda o denunciou ao diretório do PSD. Dias depois da eleição, Uírton recebeu uma carta do dire­tório regional do PSD comunicando sua demissão do emprego...
No Mixto, clube em que Uírton jogou durante 10 anos, ganhando inclusive um tetracampeonato – 51, 52, 53 e 54 – os jogadores recebiam apenas prêmios nas vitórias (20% da renda) e empates (10%). No entanto, muitos jo­gadores caras de pau achavam sempre um jeitinho de beliscar um dinheirinho por fora dos dirigentes mixtenses, mas Uírton não. Ele tinha vergonha até de ir à Imprensa Oficial do Estado para receber do diretor do Mixto e da empresa estatal, Ranulpho Paes de Barros, os “bichos” por vitórias e empates...
A falta de perspectivas no alvinegro levou Uírton a ir fazer um tes­te num time de Uberlândia, em Minas Gerais. O centroavante Leônidas, que tinha esse nome porque era bom na bicicleta, jogada inventada por Leônidas da Silva, o Diamante Negro, tinha trocado o Mixto pelo clube de Uberlândia e havia recomendado Uírton, seu irmão Uir e o goleiro Dito Gasolina ao técnico do time mineiro.
Um empresário veio a Cuiabá buscar os três, com promessas vanta­josas. Quando chegaram a Uberlândia ficaram assustados: havia uns 100 joga­dores na “república” do clube sendo submetidos a testes. Logo nos primeiros treinos, os três mixtenses começaram a fazer sucesso, confirmando as referên­cias de Leônidas.
No dia do teste final, Dito Gasolina chegou de madrugada na “re­pública” bêbedo feito um gambá. Foi uma vergonha para os cuiabanos. Mas vergonha maior estava por vir ainda. Dito Gasolina acordou de ressaca e foi treinar. Resultado: engoliu frangos de bola chutada até do meio de campo...
Terminado o treino, o empresário comunicou a Dito Gasolina que o clube preferia o outro goleiro que estava sendo testado. Mas os irmãos Uírton e Uir seriam contratados.
Uir estava de casamento marcado em Cuiabá e avisou o empresário que depois do casório decidiria se aceitaria a proposta do clube uberlandense, que incluía, além de prêmios por vitória e empates, aluguel de casa e comida de graça para ele e a mulher. Uírton receberia o mesmo tratamento.
Mas Uírton preferiu retornar a Cuiabá para o casamento do irmão e refletir melhor se voltaria ou não. E não voltou. É que Uírton, ainda garotão, tinha tido uma desavença com um jogador do clube mineiro, de nome Djalma, que vivia gozando os cuiabanos dizendo que Cuiabá era uma cidade de índios e animais selvagens e que os três tinham que andar de mãos dadas em Uber­lândia para não se perderem...
Em 1960, Uírton arrumou uma nova mulher e foi embora para Co­rumbá, onde jogou durante seis anos no time dos motoristas da Cimento Itaú. Por ser formado só de motoristas, o time chamava-se São Cristóvão, o santo protetor dos profissionais do volante.
De volta a Cuiabá, um dia Uírton foi procurar o vice-governador, o médico José Monteiro (Zelito) de Figueiredo, para pedir que ele o ajudasse a conseguir um emprego de motorista da Cemat, que tinha acabado de com­prar uma C 10 zerinho. O vice-governador rabiscou um bilhete numa folha de caderno e mandou Uírton levar para o presidente da Cemat, um irmão do governador José Fragelli, de nome Cláudio, um sujeito prepotente que não recebia cuiabanos.
Uírton foi procurar Cláudio, com o bilhete nas mãos, porém asses­sores do presidente da empresa lhe disseram que ele não seria recebido. Mas entregariam seu bilhete a Cláudio Fragelli.
– É lá do governo. Tenho ordens de entregar pessoalmente ao presi­dente – disse com firmeza Uírton.
Foi recebido. Depois de uma ligeira conversa entre os dois, Cláudio, com o bilhete de Zelito nas mãos, disse-lhe secamente: “Chegue amanhã cedo para começar a trabalhar...”
Uírton trabalhou muitos anos na Cemat. Como motorista, vivia via­jando com um contador da empresa e cujo nome não se lembra, que saía por Mato Grosso fazendo cobranças. “Muitas vezes a gente voltava para Cuiabá com a C 10 cheia de sacos de dinheiro. Naqueles tempos não tinha esses negó­cios de assaltos desses bandidos de hoje...” – lembra ele.
Recorda Uírton que sua passagem pela Cemat foi um período de boa vida. O contador era chegadinho numa cerveja e Uírton não ficava para trás. Dinheiro era o que não faltava para os dois. “Nossa vida era só alegria...” – re­cordava com saudades.

(Reproduzido do livro Casos de todos os tempos  Folclore do futebol de Mato Grosso, do jornalista e professor de Educação Física Nelson Severino).  

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